sábado, 31 de maio de 2014

EL NEGRO JEFE

O futebol mudou desde que o Brasil sediou o IV Campeonato Mundial, em 1950. Aos heróis demasiadamente humanos de antanho sucederam-se as celebridades midiáticas. Ao invés de se admirar o talento ou, como aqui exposto, o caráter, importa mais o corte de cabelo e o número de publicidades a que se associam. Em realidade, o mundo mudou desde aquele já longínquo 1950. Mas não a ponto de que esqueçamos os exemplos daquela época.

Quero falar de Obdulio Varela, capitão uruguaio naquele mundial de lembranças tão traumáticas aos brasileiros. Nasceu mulato, pobre e asmático num bairro humilde de Montevidéu, em 1917. Filho de pais separados, frequentou poucos anos da escola primária, mas desde pequeno mostrava uma maturidade impressionante. Ainda criança, vendia jornais para ajudar a mãe, e dizia que as únicas coisas verdadeiras nos periódicos eram o valor e a data. Quando iniciou no futebol, trabalhou como servente de pedreiro.

E como era Obdulio Varela do ponto de vista técnico?

Ocupava a posição que agora chamamos de volante, mas que àquela época se designava como "centre half". Seu rendimento técnico não ia além do aceitável, quiçá bom. Não era veloz, tampouco corpulento, dominava os distintos recursos dentro do que se espera habitualmente de um jogador de primeira divisão e só. Nesses aspectos não se sobressaía.

Mas então, onde estava o diferencial que o converteu num mito que transcendeu a história futebolística? Na sua personalidade.

Ela que deu significado ao apelido "Negro Jefe". Sem gritos ou histeria, sabia conduzir seriamente seus companheiros de equipe quando estes não faziam as coisas como deviam; bastavam poucas palavras, ou apenas um olhar cheio de rigor, como de um pai severo com seus filhos, para se darem conta de que deveriam empenhar-se mais em tal ou qual aspecto do jogo. Era respeitado e temido por seus oponentes, os quais sabiam não ser conveniente buscar problemas com esse "gran negro". Os demais jogadores da celeste o tratavam por Sr. Obdulio.

Nunca perdia os nervos e sabia quanto valem os gestos. Ainda que tenha sido um jogador viril, sempre foi partidário do fair play, repudiando manhas e desdenhando da brutalidade. Em certa ocasião, como capitão do Peñarol, um adversário acertou de forma violenta e maldosa um de seus companheiros. A agressividade desse oponente merecia a expulsão imediata, sem dúvidas. Porém, de forma inexplicável, a dita falta foi sancionada como simples contingência de jogo. Obdulio Varela tomou de imediato a bola, se dirigiu ao juiz de forma respeitosa, e asseverou: "Senhor Juiz, se alguém do meu time der um coice como aquele senhor acabou de dar, rogo que o expulse, porque em minha equipe jogador que age assim não merece seguir em campo". Como capitão, não poderia tolerar que um dos seus praticasse semelhante ato tão desprezível.

Noutra passagem, após uma vitória de seu Peñarol sobre a máquina do River Plate argentino, os eufóricos cartolas decidiram premiar a todos os jogadores com 250 pesos, e ele com 500. El Negro Jefe não concordou: "Eu joguei como todos; se vocês creem que mereci 500 pesos, são 500 para todos; se eles mereceram 250, eu também". E foram 500 para todos.

Os dirigentes o odiavam; a recíproca era verdadeira. Sua liderança natural o colocou na frente na maior greve de jogadores de futebol de todos os tempos, que durou 7 meses, em 1948, visando o reconhecimento de direitos trabalhistas e de formarem seu sindicato.

Contudo, o grande caráter de Obdulio Varela se plasmou com nitidez na copa de 1950. Sua atuação no torneio o catapultou à história. Na copa, foi possível observar o homem e seus recursos psico-emocionais, sua astúcia, o conhecimento e a perspicácia para perceber as virtudes e também o calcanhar de aquiles dos adversários e, de posse dessas elementos, determinar a forma adequada para manipular ou aproveitar as diversas reações dos mesmos em benefício próprio.

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Não é um texto masoquista; muito menos uma expiação de toda raiva que a falta de auto-estima brasileira me causa. Por tanto, não entraremos nos pormenores da tragédia que se abateu no Maracanã, em 16 de julho de 1950. Até porque o carrasco foi tão magnânimo que só engradeceu nossa derrota. Não deveria nem constar nos anais da história: é lenda. Basta a descrição de Nélson Rodrigues: "Varela não atava as chuteiras com os cadarços, mas com as veias".

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Nunca mais se jogará uma partida como o Maracanaço, nem existem mais homens como El Negro Jefe. A seleção brasileira ficou sem jogar por dois anos e aposentaram o uniforme branco, utilizado até então. Já se escreveu muito sobre aquele fatídico dia, a final do fim do mundo e sobre a façanha de Varela. Mas realmente épica foi a noite. El Negro saiu para beber aquela noite, uma noite que durou 46 anos. Por si só, esse fato já é um testemunho da diferença entre o futebol de então e o de hoje. Acabara de protagonizar o mais chocante feito da história das copas: a vitória de virada sobre a favorita seleção anfitriã, proclamada campeã por antecipação pelos jornais brasileiros.

Depois de algumas doses, El Negro Jefe é chamado pelo dono do bar. Ele o apresenta a um inconsolável torcedor brasileiro e diz: "Sabe quem é esse? É Obdulio". O próprio Obdulio narra o episódio: "Eu pensei que ia me matar. Mas me olhou, me deu um abraço e seguiu chorando. Depois de um tempo me disse: 'Obdulio, poderia beber conosco? Queremos esquecer, sabe?'. Como eu ia dizer que não! Estivemos a noite toda bebendo nos bares. Eu pensei: 'Se tenho que morrer nesta noite, que seja'. Mas estou aqui. Se tivesse que jogar outra vez essa final, faria um gol contra, sim senhor. Não, não se assombre. A única coisa que conseguimos ao ganhar esse título foi dar brilho aos dirigentes da Associação Uruguaia de Futebol. Eles se deram medalhas de ouro e aos jogadores deram umas de prata".

Muito tempo depois, Varela diria que nesse momento, com o torcedor brasileiro chorando em seu peito, ele se havia dado conta da dimensão daquela derrota para o Brasil. Também afirmaria que se soubesse que aconteceria tal tragédia nacional, ele não teria se esforçado tanto para ganhar, pois, afinal de contas, só os cartolas uruguaios lucraram com aquela vitória.



Nessa noite amarga para o Brasil, El Negro Jefe se recusou a celebrar a vitória com seus companheiros. No dia seguinte, não quis fotos, nem compartilhar os festejos com os dirigentes. Não sentia nenhum ardor patriótico. A explicação? "Minha pátria é a gente que sofre". Lhe deram dinheiro suficiente para comprar um carro velho, um Ford 1931, que foi roubado na semana seguinte.

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Varela se retirou do futebol em 1955, a tempo de recusar vestir uma camisa patrocinada, uma novidade na época, mesmo com o contrato prevendo dinheiro para os jogadores. Até ele deixar definitivamente os gramados, o Peñarol entrou em campo com dez jogadores patrocinados e seu veterano capitão usando a velha camisa de sempre. Justificou sua atitude declarando: "antes, nós, os negros, éramos puxados por uma argola no nariz. Esse tempo já passou".

Tentou ser técnico, mas não suportava a interferência dos diretores. Como seus antigos colegas, ao pendurar as chuteiras, continuou a trabalhar, desta feita como servidor público, onde finalmente se aposentou em 1972.

No futebol, são inúmeros os exemplos de atletas lendários por seu desempenho. De Pelé a Maradona, de Messi a Neymar, na imensa maioria dos grandes personagens, o brilho se origina de uma característica específica: o domínio dos fundamentos, a técnica, que os torna brilhantes e incomparáveis. De certa forma, cada um deles pode se constituir num modelo para a enorme quantidade de variantes que apresenta esse maravilhoso esporte coletivo. Todavia, é muito difícil encontrar nesse panteão alguém cujo maior feito estava em si mesmo, e sua "mente fria, pernas fortes e coração ardente".

Por fim, é necessário destacar a ética de Obdulio Varela. Longe dos campos, se dedicou à querida esposa Catalina e aos filhos. O maior espaço de sua vida era para a família e os amigos mais chegados. Durante o resto da vida foi requisitado pela imprensa: escrita, radiofônica e logo também a televisiva. Quase sempre recusou-as. Nas várias décadas que se seguiram ao seu afastamento, em pouquíssimas ocasiões aceitou conversar com alguma reportagem. Dentro dessa grande personalidade, vital em todo sentido, de postura firme, sólida, se ocultava também um homem humilde, que nunca quis ser endeusado, dado que também reconhecia suas limitações.

Não há dúvidas que por trás de todos aqueles que buscam o primeiro plano a qualquer custo, a necessidade imperiosa de serem reconhecidos, de serem entrevistados, mostrados, existe alguma debilidade emocional, a busca da auto-afirmação. Sem isso, se encontram "vazios", desprotegidos, frágeis e aparentam uma vida sem sentido. Obdulio Varela não necessitava destas escoras de apoio, se postando muito acima destas carências. Seu caráter, seus entes queridos e os poucos amigos da intimidade eram suficientes.

Contudo, esse homem que poderia assustar ao capeta quando se punha sério, era também uma pessoa muito sensível. Em 1996, falece o grande amor da sua vida, Catalina. Obdulio não resiste a essa dor e exatamente em 02 de agosto do mesmo ano também sucumbe perante a morte. O presidente uruguaio dispõe que lhe tributem honras especiais. O Uruguai estava em luto, chorando a perda do famoso Negro Jefe.

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Fontes:
http://leyendasyrelatosdefutbol.blogspot.com.br/2009/03/recordando-obdulio-varela-el-negro-jefe.html  (trecho do artigo “Obdulio Varela, el reposo del centrojás, en Artistas, locos y criminales”, de Osvaldo Soriano. Bruguera, 1983)
http://www.efdeportes.com/efd100/obdulio.htm  (Artigo de Jorge de Hegedüs, 2006)

Um comentário:

Rodolfo disse...

Muito bom! Meu padrasto adoraria ter lido esse texto. Ele passou a vida toda falando "centerfor".